terça-feira, 21 de setembro de 2010

Deslizes na Linguagem Jurídica

Nizaldo Pereira da Costa

Acadêmico do curso de Direito da UCSal.

Quando uma sociedade se corrompe, a primeira coisa que gangrena é a linguagem.

                                                                                           Octavio Paz

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa.

                                                                                                     Fernando Pessoa

A linguagem em que se vazam acórdãos, sentenças, pareceres e petições está longe de alcançar o que Rudolf Von Jhering denomina elegantia juris, haja vista que, entre outros motivos, não contempla duas das condições essenciais da boa escrita: a propriedade das palavras e o respeito às normas gramaticais. Imbuído do exclusivo desígnio de evitar que pecados cometidos na elaboração de tais documentos se reproduzam em vertiginosa velocidade, como sói acontecer, arroguei-me da incumbência de i-los comentando e corrigindo, ainda que seja vox clamantis in deserto.

Observar a pureza vernácula, que compreende as palavras genuínas e a correção gramatical no uso delas, revela-se um dos maiores embaraços em que se debatem doutos e mestres no redigir peças processuais. Dessa insidiosa armadilha não saem indenes, porquanto a concordância, a regência e a contextura dos períodos se incumbem de precipitá-los no abismo da insegurança. Impõem-se, nesses momentos críticos, a aquisição das necessárias noções de gramática e a leitura dos grandes escritores, os quais poliram a língua e legaram à humanidade esse rico e precioso patrimônio.

É truísmo afirmar que o escrever e o falar corretamente revestem-se, no campo do direito, de notável relevância, visto que a palavra escrita e falada é o principal instrumento de trabalho dos profissionais que militam nessa área. Contudo, registram-se, amiúde, erros e imperfeições, defeitos e incorreções que, em nome do culto à boa linguagem, merecem extirpados sem mais delongas.

Negar não se pode que tríplice é a raiz da problemática:
A primeira encontra-se profundamente fincada no distanciamento dos clássicos, cuja leitura alarga a visão de mundo, confere poder de ilação, açacala o estilo e empresta, com efeito, solidez aos argumentos;
A segunda no raso conhecimento de gramática que se patenteia no escrever semeado de solecismos e outras impurezas lexicais e sintáticas;
A terceira no parco domínio da sinonímia, manifesto na inadequada aplicação das palavras e no inopioso vocabulário.

Nessa esteira de entendimento, faz-se mister salientar, por pertinente, que a lancinante constatação, estampada no parágrafo anterior, não se traduz em estorvo bastante para impedir que se acentue a obrigatoriedade de ser a linguagem do foro escorreita, sem jaça nem nódoa, devendo para tanto guardar estrita observância aos cânones da língua culta. Acresce asseverar que a beleza e o colorido estilísticos têm o condão de lançar sobre a argumentação jurídica as luzes da elegância, da clareza e do vigor.


Injusto seria fechar os olhos ao fato de que muitos advogados, juízes, procuradores e promotores, no exercício da sua elevada missão profissional, transgridem as leis do idioma pátrio não por desconhecimento, e sim por mero descuido. Aqui cabe reproduzir a indagação lúcida e erudita do inexcedível Rui Barbosa, in Parecer sobre a redação do Código Civil:

Ninguém supõe que os redatores do Código sejam alheios à gramática, ou a ela avessos. Mas seria, ainda assim, relevável que imprimissem as suas distrações gramaticais no bronze de uma codificação?

Valer-se de inobstante, no que pertine e outras tantas neologias e inovações sintáticas, como o fazem alguns profissionais de indiscutível erudição jurídica, em detrimento das consagradas formas vernáculas (não obstante/nada obstante, no que concerne/no que tange) é deixar-se dominar por um ignominioso filoneísmo lingüístico que, por via de regra, são irrefutáveis demonstrações de incúria e descaso à última flor do Lácio.

O “se” é palavra diminuta que tem causado ciclópicos estragos no escrever e no falar dos operadores do Direito. Moda é empregá-lo indiscriminada e aleatoriamente em casos, nos quais nenhuma função sintática exerce. Senão vejamos:

  1. É necessário buscar-se formas de conciliação;
  2. O procurar-se o aperfeiçoamento das leis é salutar;
  3. Existe problema difícil de se resolver.

Nas frases 1 e 2, o “se” não apassiva nem impessoaliza o sujeito. Na primeira, o sujeito é buscar formas de conciliação, que pode ser identificado pela seguinte indagação: que é que é necessário? Resposta: buscar formas de conciliação. A frase equivale a “é necessária a busca”. Então, que faz aí o “se”? In casu, ainda que se admitisse a função apassivante para o “se”, incorreria o autor da frase em grave erro de concordância, uma vez que o verbo buscar deveria concordar com o substantivo formas que está no plural; na segunda, mutatis mutandis, a explicação é a mesma;
Quanto à frase 3, sabe-se que é regra que, quando precedido das expressões fácil de, difícil de, duro de, o verbo no infinitivo rejeita o “se”. Aqui, permita-me dizer que, nesse particular, o povo dá magistral lição, porque sempre diz ser fulano osso duro de roer, e nunca osso duro de se roer.

Nesse diapasão, é imperioso lembrar que dentre as causas dos defeitos de redação, sobressai o desconhecimento de análise sintática. A preocupação em promover a correta concordância verbal esbarra na incapacidade de identificação do sujeito. As frases que se seguem apresentam defeitos que precisam reparados:

  1. Caberá aos órgãos competentes decidirem sobre os casos não previstos na regulamentação pertinente...;
  1. Não se pode infringir normas constitucionais...;

    3. Planejam-se violar normas constitucionais...

Passemos às explicações:
Frase 1. Da análise da oração, percebe-se que o sujeito é o infinitivo decidir. Desdobrada, a frase ganha o seguinte contorno: “Decidir sobre os casos não previstos na regulamentação pertinente caberá aos órgãos competentes...” Sendo assim, correto será deixar o verbo no singular:
Caberá aos órgãos competentes decidir sobre os casos não previstos na regulamentação pertinente...;
Frase 2. A oração “não se pode infringir normas constitucionais...” está na voz passiva sintética e equivale a “normas constitucionais não podem ser infringidas ...”. Em ambos os casos, o sujeito é o substantivo normas, que, pelo fato de estar no plural, deverá também levar o verbo (poder) para o plural. Corrija-se, portanto, a frase sub examine para:
Não se podem infringir normas constitucionais...;

Frase 3. Os verbos planejar, pretender, desejar, querer, premeditar e todos aqueles que indicam vontade, desejo, intenção são chamados volitivos. Na frase, em questão, o sujeito é o verbo violar; o substantivo normas é o objeto direto de violar. Claro está que inviável é desdobrar a frase em normas planejam ser violadas, já que, por absurdo, normas não podem praticar a ação de planejar, desejar, querer etc. Desse modo, recomenda-se escrever:
Planeja-se violar normas constitucionais...

Mau vezo é o iterativo emprego dos artigos indefinidos – um, uns, uma, umas – que nenhuma elegância carreiam para os textos jurídicos, antes, desataviam as frases e desalinham os períodos. Aconselhável é evitar, sempre que possível, o uso desses indefinidos. Impróprio, porém, é empregá-los antes de outro, tão, determinado, certo, mal, semelhante, meio e igual; bem como precedendo substantivo com função predicativa do verbo ser.

Verbi gratia:

  1. O judiciário atravessa um momento delicado;
  2. Servidores lutam por uma política salarial mais justa;
  3. Está em andamento uma nova emenda à Constituição;
  4. Um outro mundo é possível;
  5. O juiz respondeu com um tão apurado gosto;
  6. De um certo modo o governo foi até benevolente;
  7. Em um determinado momento o palestrante cochilou;
  8. Salvador é uma cidade encantadora;
  9. Analúcia é uma servidora competente.

Expurgue-se o indefinido “um” das frases acima, e elas estarão limpas das manchas que soem impregnar o escrever de ilustrados que nenhum zelo votam à casticidade do idioma.

Igualmente vicioso é o hábito de usar a forma passiva de verbos que na ativa não comportam objeto direto. Tal proceder não se justifica, pois que, à exceção do verbo obedecer, é defeso apassivar verbos que têm objeto indireto como complemento. Deparam-se-nos, não raro, frases com os verbos proceder, assistir, aspirar na voz passiva.

Exemplos:
  1. Conforme prevê o regulamento, foi procedida a correição do Cartório...;
  1. A sessão em que foram julgados os processos polêmicos foi assistida por centenas de pessoas;
  1. A magistratura é aspirada por muitos estudantes de Direito.

Para imprimir correção e beleza às frases, basta-lhes dar o seguinte torneio:
  1. Conforme prevê o regulamento, procedeu-se à correição do Cartório...;
  2. À sessão em que foram julgados os processos polêmicos assistiram centenas de pessoas;
  3. À magistratura aspiram muitos estudantes de Direito.

Impende trazer à baila frases colhidas em publicações forenses que, por conter equívocos e deslizes, não merecem imitadas:

  1. O recurso foi adredemente interposto para obstaculizar o trâmite normal do processo...
Adrede (ê), que significa de caso pensado, intencionalmente, é advérbio e, como tal, invariável. O sufixo mente só pode ser acrescido aos adjetivos, transformando-os em advérbio de modo. Como já pertence à categoria de advérbio, adrede rejeita o sufixo. Corrija-se a frase para:
O recurso foi adrede interposto para obstaculizar o trâmite normal do processo...;

2. Ao juiz compete assinalar novo prazo para que as partes prestem as informações que julgarem necessárias...
Na linguagem forense, o verbo assinar, e não assinalar, é usado com o significado de aprazar ou fixar prazo. Nessa acepção empregam-no o Código de Processo Civil (artigos 67, 119, 146 e 185) e o Código de Processo Penal (artigos 145, II, e 331, parágrafo único). Recomenda-se escrever:
Ao juiz compete assinar novo prazo para que as partes prestem as informações que julgarem necessárias...;

3. Não posso, por razões óbvias, concordar com parte da doutrina que entende ser legítimo ao advogado industrializar testemunha...
É errôneo o emprego de industrializar em vez de industriar. Este significa instruir de antemão, preparar com visíveis más intenções; aquele, promover o desenvolvimento industrial. À vista do exposto, aconselha-se escrever:
Não posso, por razões óbvias, concordar com parte da doutrina que entende ser legítimo ao advogado industriar testemunha...;

4. A despeito dos fortes indícios, não foi punido o administrador improbo...
O antônimo de probo (ô), que significa honesto e íntegro, é ímprobo. Incorre em erro de prosódia ou silabada quem escreve ou pronuncia improbo. Eis a frase isenta do erro:
A despeito dos fortes indícios, não foi punido o administrador ímprobo...;

5. A decisão do Tribunal implica em obrigar os envolvidos a adotar medidas com vistas a coibir excessos.
O verbo implicar, no sentido de ter como conseqüência, resultar, acarretar, originar, pressupor, exigir, tornar necessário, é transitivo direto, devendo ser usado sem a preposição. Corrija-se para:
A decisão do Tribunal implica obrigar os envolvidos a adotar medidas com vistas a coibir excessos.

6. O juiz infligiu ao infrator da lei a multa de R$1.500 (um mil e quinhentos reais)...
É erro grave anteceder o numeral cardinal mil de um. A frase, portanto, ficará livre da cinca se for escrita:
O juiz infligiu ao infrator da lei a multa de R$1.500 (mil e quinhentos reais)...



BIBLIOGRAFIA

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___________, Dicionário de sinônimos e antônimos da língua portuguesa, 43ª ed., São Paulo, Globo, 2005.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa, 3ª ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.
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LUFT, Celso Pedro. Moderna gramática brasileira, 4ª ed., Porto Alegre, Globo, 1981.
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SABAG, Eduardo de Moraes. Redação forense e elementos de gramática, 1ª ed., São Paulo, 2005.
SACONNI, Luiz Antonio. Não erre mais. 8ª ed., São Paulo, Ática, 1986.

Um comentário:

  1. Parabéns, Adorei a postagem.
    Gostaria de saber o porquê da utilização indevida da letra maiúscula na escrita jurídica como: Direito Privado, Direito Penal, ou isso é adequado?
    Abraço,
    Ana

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